sexta-feira, 28 de março de 2014

O Cinema Político em Tempos Difíceis

     No dia 1 de abril de 2014, cinquenta anos terão se passado desde que um golpe militar depôs o presidente João Goulart e iniciou um regime militar que durou 21 anos. O período foi manchado por torturas e perseguições a opositores, por censura e autoritarismo. Os meios artísticos buscaram diversas formas metafóricas de se expressar em um momento no qual a produção cultural passava por um crivo censor. O ano de 1968 – que marca as revoltas estudantis iniciadas em Paris e que se espalharam pelo mundo – no Brasil, foi o ano marcado pelo Ato Institucional nº 5, que fechou o Congresso Nacional e permitiu ao presidente, que na época era uma capivara que atendia pelo nome de Costa e Silva, governar por decreto. No ano seguinte, 1969, o cineasta grego Costa-Gavras, conhecido pelo engajamento político e pelo senso crítico apurado, lançava sua obra-prima, um filme que possuía um título composto por uma só letra: Z. Z, o clássico dos thrillers políticos, é um dos filmes mais eloquentes já feitos contra o autoritarismo. Consegue esse efeito sem discursos apelativos, mas com um roteiro preciso e com um posicionamento político sincero e coerente. Não por acaso, Z foi interditado pela censura brasileira por diversos anos. Pensar nisso pode nos levar a uma reflexão interessante sobre o papel da arte em tempos de crise.



     Os últimos momentos de Z, nos quais Costa Gavras mostra, de forma fria e direta, o início da ditadura militar na Grécia, ainda me impressionam. Mais marcante do que eles são as palavras que percorrem a tela ao final do filme. Desfilam diante do espectador coisas proibidas pela ditadura grega, sobre a qual as pessoas em geral sabem muito pouco. A ditadura grega proibiu a sociologia e a filosofia. Proibiu Tolstoi e os Beatles. Proibiu Rolling Stones e Dostoievski. Pérolas culturais de uma época e de outra. Disciplinas que instigam o pensamento crítico. Chegaram ao cúmulo de proibir uma letra do alfabeto. A letra Z. Nessa única letra está todo o simbolismo do filme, sobre o qual não falarei mais para não estragar o sabor da descoberta para aqueles que ainda não assistiram ao filme. 




Não teria sido possível filmar uma denúncia desse tipo na Grécia, que vivia um governo autoritário. Então, Costa Gavras filmou na França, com belos diálogos sendo interpretados por grandes atores franceses como Yves Montand e Jean-Louis Trintignant. No Brasil, como já disse, o filme foi proibido.

Costa Gavras dedicou toda sua carreira ao cinema crítico e político. O cineasta grego ainda está em atividade. Seu último filme foi O Capital, lançado ano passado.

     A história segue a investigação do assassinato de um líder político de esquerda, e  o diretor a conduz com a elegância e a inteligência que andam fazendo falta ultimamente em thrillers de Hollywood. O promotor incorruptível interpretado por Trintignant é responsável por momentos de tensão apenas com palavras, montando uma personagem que surge diante dos olhos do público com um exemplo de funcionário público honesto e comprometido com os interesses da população. Em nenhum momento o promotor se rende aos interesses de pessoas que ocupam posições mais influentes do que a sua, como grupos de políticos e de militares. E o público é convidado a acompanhar essa luta de forças desiguais, sendo tratado com um respeito imenso. Costa Gavras parece apostar na inteligência do público, provocando-o a seguir sua história, suas críticas, seu posicionamento político e histórico. Esse respeito ao espectador é uma das características mais importantes desse gênero de cinema que podemos chamar de “filmes políticos”, de forma um tanto quanto generalizante. A condução inteligente da história e a exposição crítica da trama política é o que faz esse tipo de filmes – logicamente podemos estender essas características a outras mídias, como a literatura e a televisão – serem tão importantes em tempos difíceis. A reflexão e o pensamento crítico são fundamentais ao se atravessar períodos problemáticos.

Jean-Louis Trintignant aponta para um militar corrupto.

     Acho possível dizer que o Brasil passa por momentos difíceis. Na época em que Z foi lançado, nosso país também atravessava momentos de crise. Mesmo não assistindo ao filme, diversos brasileiros sabiam que ele havia sido censurado, o que pode estimular reflexões sobre as razões para essa proibição. Brasileiros que foram ao exterior puderam ver o filme, e refletir de forma ainda mais intensa sobre esse país que proíbe obras que criticam ditaduras. Então, em tempos difíceis, reflexões e tramas políticas são bastante interessantes. Não necessariamente para realizarmos uma reflexão histórica sobre eventos acontecidos, mas também para entendermos nossa própria realidade. No caso específico do Brasil, acho que seria mais chocante escancarar a hipocrisia e a crueldade de nossa sociedade atual do que recuperar eventos políticos passados. Não quero dizer que não se devam produzir filmes – e livros e músicas – sobre o regime militar, sobre a Era Vargas ou sobre o que for, mas sim que precisamos também de filmes – e livros e músicas - de viés político e críticos aos tempos complicados que atravessamos. É necessário falar sobre uma sociedade surreal que acha que participar de programas de distribuição de renda do governo federal é sinônimo de vagabundagem. Ou que afirmam não existir racismo no Brasil. Ou que se utilizam de termos cretinos como “ditadura gay”, “gayzismo”, “feminazis” e outras coisas imbecis do gênero.
            Para citar exemplos de filmes que fizeram isso, e não falar apenas do trabalho do grande Costa Gavras (que fez uma bela carreira, com outras obras políticas como Estado de Sítio e o polêmico Amén): Todos os Homens do Presidente, de Alan J. Pakulla, conta de forma extraordinária a pesquisa jornalística que colaborou para o fim do governo de um escroque chamado Richard Nixon. Sidney Lumet, um dos maiores diretores de todos os tempos, comentou de forma instigante a busca desenfreada por audiência em uma rede de televisão, o que leva à produção de sensacionalismo puro e acrítico, em Rede de Intrigas. Chaplin criticou Hitler em plena Segunda Guerra Mundial, com seu O Grande Ditador. Stanley Kubrick ridicularizou a Guerra Fria e a corrida armamentista entre EUA e URSS em Dr. Fantástico. E há o clássico dos clássicos dos filmes políticos: A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, belo relato sobre a luta pela independência da Argélia. Há muitos outros, apenas citei meus favoritos. E olhem que nem entrei no território da ficção científica e das distopias, que nos presentearam com maravilhas como 1984, livro de George Orwell, e a série de jogos Bioshock, uma das melhores histórias que eu já tive o prazer de conhecer, em qualquer mídia.
Alguns podem se perguntar se estamos mesmo atravessando tempos difíceis, ou se essa afirmação é um exagero. Porém, é importante lembrar que vivemos numa época na qual pessoas buscam reeditar a Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade, bradando que um golpe comunista é iminente no Brasil. Vivemos numa época em que uma pesquisa constata que 65% da população acha que mulheres que se vestem de maneira considerada provocante merecem sofrer abusos. Se, ao lermos alguma notícia em um site, pararmos por alguns momentos para nos atentarmos aos comentários, encontraremos absurdos inclassificáveis. Pessoas que incitam o ódio e que parecem se esquecer que, pensando igual ou pensando diferente, vivemos em uma sociedade e devemos conviver uns com os outros. E não há possibilidade de começar a resolver os imensos problemas que nossa sociedade possui caso não pensemos de maneira crítica e consigamos ter uma leitura densa sobre nossa realidade. Caso continuemos a lançar comentários estúpidos pregando a intolerância e o ódio às minorias perderemos totalmente a educação e o senso crítico, e estaremos caminhando para uma sociedade acrítica na qual a maioria da população acha que mulheres sofrem abusos porque querem, e que uma ditadura militar – recuso-me a dizer intervenção, por motivos políticos – resolveria problemas como criminalidade e corrupção. Não resolveria nada, mas sim criaria uma realidade na qual obras de arte políticas seriam interditadas. Z não seria um filme exibido nesse tipo de sociedade. Então, vivemos tempos difíceis. Devemos agir para que não se tornem tempos piores. E, para começar a agir, basta pensar, mas pensar de forma crítica.