terça-feira, 24 de junho de 2014

Reflexões sobre a Copa do Mundo - Parte 2

Existe protesto coerente que não seja o boicote total?


Hoje, andando pelas ruas, sinto o clima trazido pela Copa do Mundo. É dia de jogo do Brasil. Em todos os estabelecimentos a presença é garantida de bandeirinhas e televisões transmitindo as partidas; os carros, enfeitados de verde e amarelo, buzinam sem motivo. Durante o trajeto do ônibus, vejo passageiros subirem e descerem, todos com camisas do Brasil. Saíram de casa para trabalhar, como num dia qualquer, mas levam as cores do país, pois é Copa do Mundo. Vejo, do outro lado da rua, um outro ônibus, também ele lotado de torcedores com bandeiras, também ele levando a multidão que espera ansiosamente chegar em casa para assistir ao jogo. Sinto-me, então, contagiado pela atmosfera, e me pergunto se eu mesmo deveria ter saído de casa vestindo verde e amarelo. Entretanto, não deixo de me perguntar: para onde foi toda a insatisfação que levou milhares às ruas há exatamente um ano? Onde está o ódio daqueles que protestaram contra a Copa nos últimos meses?
Para os amantes do futebol, imagino que todo esse descontentamento permaneça, porém mesclado à euforia trazida pelo Mundial. É o meu caso. Sem dúvidas, sua chegada me trouxe sentimentos ambíguos e paradoxais. Como disse na primeira parte desta reflexão, ainda que não me oponha, a priori, à utilização de dinheiro público, há que se questionar tudo o que ocorreu ao longo da organização e quais são os interesses envolvidos num um evento tão carregado de contradições, sendo justamente o caráter antidemocrático e a organização irresponsável que motiva as sensações divididas[1]. Assim, para os apaixonados pela bola, como fica a consciência política em tempos de Copa do Mundo?
Diante da óbvia constatação de que o Mundial é um evento corrupto e leviano com dinheiro público, diversos questionamentos vêm à cabeça: até que ponto participar da Copa é compactuar com desvios de verba, desperdícios de recursos e superfaturamento? Frente ao elitismo do evento e aos benefícios dados às grandes empresas, em que medida se entusiasmar com a competição é estar de acordo com a manutenção das desigualdades e a segregação social?

Protesto feito por torcedores no Maracanã
Em meio a esse fluxo de consciência, não consigo deixar de achar hipócrita o ato de pagar preços abusivos em ingressos e, do alto do conforto dos camarotes, vaiar a presidenta, ou mesmo o presidente da FIFA. Afinal, que opção tem o consumidor indignado diante dos altos valores se não a recusa da compra? Com o conhecimento de que as quantias pagas por ingressos, alimentos e bebidas em estádios e produtos licenciados (camisetas, álbuns de figurinhas, etc) vão direto pro bolso da federação, em que medida consumir é contribuir para o caráter corrupto e antidemocrático da Copa? Quantos opositores da Copa recusariam um ingresso para a final, para manter a coesão do posicionamento político? Pode-se argumentar, porém, que é possível participar do Mundial e de suas celebrações e, ainda assim, protestar, expressar indignação e revolta. Pergunto-me: como? Levando faixas aos estádios, sabendo que deles estão excluídos os trabalhadores comuns, também apaixonados pelo futebol? Protestando na Paulista contra a Copa e, logo após, ao chegar em casa, ligando a TV no Sportv para assistir à próxima partida?

Façamos, então, um pequeno exercício de reflexão: imaginemos um sujeito que gosta muito de comer carne, apesar de simpatizar com a causa do vegetarianismo. Assim, participa de manifestações e levanta faixas contra o assassinato em massa de animais, mesmo sabendo que o filé que comeu no almoço foi responsável direta ou indiretamente por tirar uma vida. Imaginemos também um indivíduo que gosta muito de fazer compras e que se decepcionou ao descobrir que sua grife favorita produz com mão de obra escrava. Contudo, viu uma oferta imperdível (dessas que só aparecem de quatro em quatro anos) e, depois de assinar petições do Avaaz contra a marca, comprou os últimos lançamentos.
Há alguma coerência nesses casos? Há lógica e nexo em manifestações seletivas e parciais? Afinal, existe protesto coerente que não seja o boicote total?
Por outro lado, apesar da constante ponta de culpa, não me sinto responsável direto por nenhuma dessas injustiças. Ao contrário, poderia dizer que, como admirador do esporte, sou mais uma vítima de uma gestão arbitrária e desonesta, infeliz marca do governo brasileiro e da FIFA. Como outros tantos, amo o futebol. Vivo o esporte de quase todas as formas que estão ao meu alcance: acompanho aos jogos e notícias, sou sócio do clube pelo qual torço, vou ao estádio sempre que posso. Por conta dele, já fui às lágrimas por alegria, tristeza, ódio. Para além do clubismo, sigo campeonatos nacionais e internacionais, acompanhando qualquer partida de nível interessante. Dessa forma, vejo que minha paixão pelo futebol é mais antiga que a escolha do Brasil como sede; frequento estádios desde antes de seu orçamento superfaturado para o Mundial. Assisti e vibrei com todas as Copas do Mundo desde que tenho tamanho para me sustentar sentado num sofá. Assim, o início da Copa de 2014, no Brasil, deveria proporcionar a mim e a milhares de outros apaixonados um completo ambiente de festividade e euforia. Por que devo me sentir diferente neste ano?  Porque devo negar minha satisfação por conta de absurdos dos quais não sou causador?Parece-me que a imposição de culpa sobre os que torcem pelo futebol e se emocionam com a Copa é o mesmo que privá-los de uma paixão que nada tem a ver com uma organização injusta e antidemocrática. Será mesmo que gostar da Copa e vibrar com ela significa necessariamente uma mancha na consciência política?

Estudantes reunidos no Ginásio da Unicamp para assistir à Copa de 2010: memórias de um tempo em que torcer não implicava em sentimentos ambíguos e contraditórios
Por fim, encerro aqui esta reflexão sem concluir nem postular. Mais que uma defesa de ponto de vista, este texto é um convite a um diálogo com amigos que, como eu, devaneiam sobre a Copa do Mundo, seus significados e os sentimentos que provoca.



[1] Não intenciono listar aqui a enormidade de injustiças ocorridas ao longo da preparação e o quanto a Copa está contribuindo para a manutenção das desigualdades sociais. Para esses propósitos, a internet se mostrou um instrumento importante de denúncia e muito tem se publicado sobre esses temas (confira aqui e aqui).

2 comentários:

  1. Oi Mateus.
    Acredito que, ainda que as suas fronteiras sejam difíceis de definir, é possível estabelecer um princípio de coerência quanto ao nosso posicionamento político face à copa do mundo. Sem entrar no mérito de definir o evento como estruturalmente problemático ou tornado problemático em certas conjunturas, acredito que a copa do mundo nos obriga, no Brasil, a nos posicionarmos politicamente, quer queiramos, quer não. Se um sentimento de culpa irrompe da suposta euforia com o esporte, é justamente em razão da contradição entre a obrigatoriedade do posicionamento político e um suposto ideal de fruição despreocupada que a Copa suscita.
    Há mais ou menos um ano atrás, como você bem lembrou, estávamos diante de um fenômeno político altamente complexo, sentimentos de insatisfação diversos e contraditórios emergiram ou foram construídos nas ruas. Pois bem, acredito que não seja difícil argumentar que a Copa do Mundo foi objetivada, tornada possível, através justamente da mobilização de mecanismos políticos que estavam, há um ano atrás, sendo postos em cheque por centenas de milhares de pessoas. Portanto, parece possível inferir que a copa expressa uma sobreposição perversa dos interesses privados sobre o interesse público.
    Me parece que o desejo de prazer, entretenimento e lazer de grande parte da população brasileira tem sido erroneamente percebido como respaldo democrático para a Copa do Mundo, argumento que se vale de uma noção simplista de democracia como vontade da maioria. Eu me pergunto como, prevalecendo esta noção de democracia, sobreviveriam com dignidade minorias sociais num país majoritariamente conservador. A Copa do Mundo é um atentado à democracia, é materialização da prevalência do prazer sobre a crítica política, do sentimento nacional difuso e conservador sobre os setores produtivos mais básicos do Estado, da vontade de uma maioria ávida por entretenimento a qualquer custo que, cinicamente, critica a situação política do país nos intervalos dos jogos.

    ResponderExcluir
  2. Gostaria de somar aos exemplos que você forneceu, mais um que, na minha opinião, ilustra a situação:
    As touradas na Espanha ou mesmo os Rodeios no Brasil são eventos fundamentados em requintes de crueldade indizíveis com os animais participantes. No entanto, mobilizam grandes contingentes de espectadores ávidos por prazer, felizes por prestigiar a festa, prontos a entregar-se à formação de laços afetivos e identitários despreocupados, no exercício de seu direito democrático liberal de pagar pelo prazer. São eventos que, tais como o futebol, despertam emoções fortes e se inscrevem nas tradições mais valorizadas de certas regiões. Eu me pergunto, porém: tais eventos são aceitáveis ? Podemos obter prazer a troco da crueldade com estes animais ? É uma questão ética e política. Mas não da pra defender os direitos dos animais e prestigiar uma tourada ! Assim como, no Brasil, é incoerente qualquer crítica a práticas ou lógicas políticas que tornaram a Copa do Mudo viável a partir do ponto de vista de um prestigiador do evento, em qualquer nível. O sentimento de culpa não pode ser infundido, a culpa advém, na minha opinião, de uma tensão pessoal entre uma expectativa de conduta e a consciência de seu potencial desrespeito. Mas estamos de acordo, a culpa não é um sentimento construtivo, pois leva à resignação e ao sofrimento pessoal. Gosto mais do termo responsabilidade. E não acredito que possamos nos eximir de responsabilidade perante a Copa do Mundo e suas mazelas: nós fomos vendidos como o povo do futebol, o baluarte do amor incondicional ao esporte, e recebemos como pagamento a violação de direitos, a precarização do trabalho. Todos os brasileiros estão implicados, pois foram todos vendidos como portadores de uma certa conduta, à qual eu acho que não devemos corresponder !
    Não sei se é possível um boicote total, nem o que ele significaria na prática, mas eu, pessoalmente, começo questionando a ideia de que a " emoção contagiante" é um sentimento neutro, apolítico. Acredito que o prazer e o entretenimento são dimensões imprescindíveis da existência humana, mas, justamente por isso, estão impregnados pela política, por interesses econômicos e estruturas de poder. Não é o momento de evocar o batido e preconceituoso bordão do "pão e circo", mas de questionarmos em que medida o prazer a que estamos habituados, o prazer que consumimos, se insere na lógica da reprodução das desigualdades sociais e das ideologias que as legitimam, e o quanto a própria ideia do prazer a qualquer custo e isento de responsabilidade também não é uma dimensão destas ideologias.
    Abraços Mateus,

    ResponderExcluir